(Teruko Oda, Masuda Goga, Nempuku Sato)

Imigração poética: O haicai nipo-brasileiro

Gabriel Yukio Goto
7 min readApr 11, 2020

Esse artigo é uma adaptação do meu TCC da faculdade que era sobre o haicai num geral em solo brasileiro, aqui eu focarei especialmente em dois haicaistas que geralmente não recebem tanto destaque, isso se dá pelo fato deles não serem brancos e um deles se quer escreveu em língua portuguesa, apesar de sua importante contribuição para nós. Falarei sobre Nempuku Sato e Masuda Goga, dois imigrantes que assim como milhares de japoneses vieram para o Brasil em busca de uma nova oportunidade, mas com o dilema de preservar a sua cultura tão antagônica em um ambiente por muitas vezes hostil para o outro.

Dividirei esse texto em três: uma breve introdução para quem não é familiarizado ao haicai, uma dedicada ao Nempuku Sato e outra para o Masuda Goga, dito isto podemos começar.

I — Introdução

O haicai é um estilo de poesia, cuja estrutura se apresenta sempre em tercetos, sendo que o primeiro e o terceiro versos possuem 5 sílabas poéticas cada e, o segundo verso possui 7 sílabas. Sempre marcado por um kigo que é a palavra que marca determinada estação, o haicai tradicional é sempre relacionado com a natureza.

Paulo Leminski falava de como o haicai era um poema-flash, como uma fotografia eternizando um momento, essa é a força desse poema, de concentrar toda a reflexão e momento na eternidade das palavras.

É impossível reproduzir com exatidão esse estilo poético tão particular da língua japonesa em nossa língua mãe, português. Contudo, diversos poetas brasileiros tentaram dar a sua visão e marca, nomes como Guilherme de Almeida, Millor Fernandes, Paulo Leminski, Augusto de Campos, Alice Ruiz entre outros… Mas é claro, o que todos eles tinham em comum eram o fato de serem brancos e por melhores que sejam os seus haicais, há algo que vai além da arte que é a importância da herança cultural.

O primeiro haicai escrito em território brasileiro se deu pelo imigrante Shuhei Uetsuka (1876–1935) conhecido pelo pseudônimo Hyokotsu. Quando o Kasato Maru, navio que trouxe os primeiros imigrantes japoneses chegou no porto de Santos, no dia 18 de junho de 1908, Hyokotsu escreveu:

karetaki o miagete tsukinu iminsen

Em uma tradução do próprio Masuda Goga:

A nau imigrante
chegando: vê-se lá do alto
a cascata seca.

Ao analisar o haicai, podemos pensar que a cascata seca seja algo que ele tenha visto na paisagem local de Santos, nada demais, mas pode também se referir ao próprio Kasatu Maru, a cascata seca é a rampa que liga o navio ao porto e que de cima ele podia observar o que em instantes seria milhares de pessoas descendo como uma cachoeira.

Infelizmente, mesmo com Hyokotsu escrevendo o primeiro haicai ainda em 1908, quem de fato apresentou a arte secular de origem zenbudista foram os franceses através de seus estudos orientalistas.

Nempuku Sato ao lado de Hyokotsu

A realidade dos imigrantes japoneses era a de um trabalho árduo e com pouquíssimo tempo para se pensar no haiku. Somente a partir de 1926, quase 20 anos depois da chegada dos primeiros, essa perspectiva começa a mudar. Através da Aliança núcleo colonial japonesa, Kan-Ichiro Kimura (1867–1938) de nome haicaístico (ou pseudônimo) Keiseki e Kenjiro Sato (1898–1979), conhecido melhor como Nempuku, lideraram um movimento de cultivo e difusão do haiku tradicional na colônia japonesa, que contava então com cerca de mil discípulos.

II — Nempuku Sato

Sato nunca escreveu um haicai em língua portuguesa, mas a sua importância para o haicai brasileiro foi colossal, porque ele teve a missão de propagar o haiku em terras estrangeiras. Ao vir para o Brasil, na década de 1930, participou de intercâmbios culturais com poetas brasileiros e foi também mentor de Hidekazu Masuda, ou Masuda Goga.

Nascido em 1898 na cidade de Sasaoka, Sato iniciou os estudos e a prática do haicai em 1922 por intermédio de um professor de medicina da província de Niigata e logo adotou o seu nome de haicaista, Nempuku que significa “pensar com a barriga” ou “pensamento visceral”.

Para compreender a viagem do haicai de Nempuku é preciso entender os elos que o uniam ao Japão e a sua forte ligação com Kyoshi Takahama (1874–1959), um dos discípulos de Masaoka Shiki (um dos quatro grande haicaístas, ao lado de Basho, Issa e Buson).

Sato teve como missão implícita, ao embarcar para o BRasil, a de cultivar o haicai em solo estrangeiro, missão que tomou para si como um caminho de vida, buscando cumpri-la com muita dignidade e reconhecimento, como deixa claro no haicai oferecido ao seu amigo.

Cultive a terra
plantando com suor
um país de haicais

Takahama sabia que seria improvável para o seu amigo focar no haicai desde o início, pois imigraria para trabalhar e precisava construir tudo do zero em um país desconhecido, com uma língua difícil e estranha como principal empecilho. Apesar disso, foi designado a propagar a vertente japonesa do haicai em solo brasileiro, chegando ao porto de Santos em 1927, 19 anos depois da chegada dos primeiros imigrantes.

No mesmo ano da chegada de Nempuku ao Brasil, segundo Chaga (2000) a palavra haicai constava na Larousse Ilustrée com duas acepções: na primeira, significava uma forma de poesia japonesa, na segunda, aparecia como um novo terceto francês.

Apesar dos estudiosos brasileiros reconhecerem o haicai como japonês, não perceberam na época que ele já havia se modificado em solo francês.

A terceira vertente a aportar por aqui, finalmente, é a dos imigrantes japoneses. Enquanto os europeus e estadunidenses trouxeram para cá a forma do haicai, o mestre Sato, escrevendo em japonês, trouxe a história. Fazendo com que a arte poética desse um giro no tempo e pudesse recriar momentos como em seu início no século XVII com Basho. Vivendo no campo, Nempuku conseguia conversar com um passado que não era o seu, mas o do próprio haicai.

Enquanto o ocidente abusava da forma, os imigrantes japoneses buscavam a completa adaptação da mensagem contida no haicai à nova terra. O haicai é, acima de tudo, uma exaltação ao momento e à natureza e o mais complexo para Nempuku e os seus discípulos foi essa mudança para um país com clima tão inesperado como o nosso. Conforme Chaga (2000), cita Sato: “Levei dois anos da minha vida para compreender a posição dos ventos, que é totalmente diferente do Japão; levei dois anos da minha vida para saber que o vento sul é frio e o vento norte é quente”.

Além da adaptação climática, era necessário se adaptar ao crescimento urbano que minava o campo levando mais e mais agricultores para as cidades médias, principalmente ao norte do Paraná e interior de São Paulo onde a maioria dos imigrantes japoneses se instalaram.

Após largar o trabalho no campo, Sato passou a escrever para jornais exclusivos da colônia e publicar livros, cujos temas, mesmo sem nunca mais ter voltado para a sua terra natal, eram sobre o Japão e sua árdua missão de propagar o haicai em solo estrangeiro, o que conseguiu cumprir com a sua peregrinação pelas cidades nas quais os imigrantes se acomodaram, através de reuniões em que se compartilhava os conhecimentos. Numa dessas reuniões, conheceu Masuda Goga, que o ajudou a manter a chama viva.

A importância do mestre Nempuku Sato é vital ao haicai brasileiro e a influência de sua obra pode ser vista nos haicais de Masuda Goga e até nos de Paulo Leminski, principal nome do estilo se tratando de autores brancos.

shin areba bun wa mijikashi shutoka

Se houver fé
poucas palavras bastam,
lume outonal.

III — Masuda Goga

Masuda Goga nasceu em 1911 no Japão e emigrou para o Brasil em 1929, inicialmente trabalhando em fazendas de café até se tornar um pequeno comerciante. Depois virou jornalista e redator chefe do “Jornal Paulista”, periódico em japonês fundado após a Segunda Guerra Mundial.

A divulgação por sua parte teve um importante diferencial: escrevia em japonês, mas passou a escrever também em português. Buscando a adaptação do terceto em nossa idioma, acreditando que o haicai fosse uma arte universal, uma vez que a natureza é universal, como disse em uma entrevista para o jornal Nikkei em 1998.

Goga começou a escrever em português no ano de 1936 e desde então passou a defender o ensino de Basho, ou seja, de que o haicai deveria manter a forma 5–7–5 das sílabas. Além disso, a presença vital para o haicai era o de um kigo. Ele viveu aproximadamente 9 décadas e meia a serviço do haicai, principalmente catalogando kigos brasileiros e difundidos o haicai através da colônia japonesa.

Em 1987 com a criação do Grêmio Haicai Ipê, Masuda Goga foi capaz de repassar os seus ensinamentos e a importância das palavras das estações. Com o auxílio dos agremiados, organizou uma antologia de haicais brasileiros (1990), uma antologia de haicais latino-americanos (1993) e, em parceria com sua sobrinha Teruko Oda (1945-), lançou em 1996 um dicionário completo com kigos após décadas de estudo das mais diversas palavras e expressões que seriam genuinamente palavras de estações brasileiras (por ex: vento outonal, é um kigo referente ao outono, esse é fácil de se identificar, porém se eu dizer “noite de são João” todo brasileiro vai relacionar com as festas juninas, logo ao inverno).

Em 2004, aos 93 anos de idade, Masuda Goga recebeu o “Masaoka Shiki International Haiku Prize” devido à sua contribuição e divulgação do haicai no Brasil, faleceu em 2008 aos 97 anos no ano do centenário da imigração japonesa, deixando extenso legado e discípulos.

IV — Considerações Finais

Há muito o que poderia ser dito sobre o haicai, mas acredito que para o intuito do que venho escrevendo no medium isso seja o suficiente por hora, dar visibilidade a dois imigrantes que largaram tudo que tinham em sua terra natal para se aventurar em um local completamente novo e amedrontador ainda sendo capazes de compartilhar a arte da poesia minimalista que vai muito mais além do minimalismo, o haicai brasileiro deve muito aos dois issei, mas infelizmente que têm suas relevâncias constantemente apagadas ou minimizadas, seja por falta de documentação ou de pesquisa, o fato é que o haicai é um estilo de poesia japonesa e sempre será, sofreu em seus quase 400 anos diversas mudanças teóricas e hoje geográficas, mas ainda continuará tendo como terra natal o Japão e só dois amarelos teriam a capacidade de dar início a essa nova escola, não os franceses, nem os ingleses tão pouco os estadunidenses.

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Gabriel Yukio Goto
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Written by Gabriel Yukio Goto

Asiático-brasileiro, libriano, escritor e poeta. Formado em Letras e com 2 livros publicados.

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