Parte da capa do livro Querida Konbini

Vocação, Ser Útil à Sociedade e Ser Normal com Sayaka Murata em Querida Konbini

Gabriel Yukio Goto
4 min readNov 6, 2021

Sinopse: Aos 36 anos, Keiko Furukura continua no trabalho da juventude em uma loja de conveniência e nunca se envolveu romanticamente. Ela é feliz assim, mas desde pequena é considerada estranha ― sua família e amigos se perguntam desesperadamente como ajuda-la a ser uma pessoa normal. Mas é na konbini, com suas regras estritas para os funcionários e uma dinâmica precisa de funcionamento, que Keiko encontra o seu lugar. Observando as recomendações dos gerentes e copiando os trejeitos e modos de vestir e falar de seus colegas, ela finalmente se sente uma peça no mecanismo do mundo. Com humor ácido, Sayaka Murata cria um retrato realista e satírico da sociedade contemporânea e sua obsessão com a normalidade, o trabalho e o sexo. Às vezes, mudando um pouco as lentes e a perspectiva, veremos que quem se considera normal pode não ser tão normal assim…

ANTES DE TUDO FICA O DISCLAIMER QUE EU POSSA CONTAR ALGUM SPOILER, LEIA POR CONTA E RISCO.

Querida Konbini, antes de tudo, é um livro sobre sonhos realizados. Afinal, quem nunca sonhou em estar tão inserido na Sociedade ao ponto de não ter mais sobre o que reclamar e ser feliz naquilo em que foi designado? É o caso de Keiko Furukura, protagonista da história, que aos 36 é funcionária de uma konbini (como os japoneses se referem as lojas de conveniência) há 18 anos.

O livro é narrado em primeira pessoa e conhecemos o mundo ao redor de Furukura, que desde a infância era categorizada como “anormal”, por esses e outros detalhes que conseguimos perceber pela sua narrativa é possível supor que ela seja neurodivergente (e assexual!) e acho isso um ponto positivo, não é necessário que personagens de minorias tenham um atestado e diagnósticos prontos para que só assim sejam validados, se a Keiko é ou não, não resta a nós saber, mas como leitores podemos confabular sobre a história.

A protagonista é uma Funcionária, vivendo a favor do bom funcionamento da loja de conveniência em que ela trabalha há 18 anos, é admirável e inspirador ver a relação que ela tem com o seu ambiente laboral, como eu trabalhei por 3 anos em uma loja no centro da cidade, conseguia entender perfeitamente as obrigações que ela precisava ter, mas confesso que nunca tive a mesma empolgação.

Contudo, ao ser uma mulher de 36 anos que trabalha 18 anos em uma konbini, sem nunca nem ao menos ter namorado alguém (e consequentemente ter se relacionado sexualmente) as pessoas do seu pequeno círculo social a infernizam com perguntas que ela não entende como responder corretamente, sempre se constrangendo quando isso ocorre seja com suas amigas ou família.

O enredo toma um novo rumo quando um novo funcionário é contratado para a konbini, Shiraha. Shiraha é um homem com a mesma idade de Keiko, mas é completamente displicente, não se esforça no trabalho por considerá-lo uma perca de tempo e para não querer se juntar a “ralé”. Ao ser demitido após denúncias de assédio tanto em funcionárias como tentativas contra clientes, ele volta a reaparecer na história quando Keiko o avista na rua, sujo e maltrapilho, se espreitando como se tentasse se esconder de alguém.

Nisso, acontece a grande reviravolta da história que se dá a partir do diálogo entre os dois, Shiraha é um chato insuportável, a melhor descrição que pode ser dado a ele é a de um INCEL insuportável que não se esforça minimamente e acha que as pessoas deveriam servi-lo. Apesar disso, nossa protagonista parece não se importar com o jeito desagradável do seu ex-colega de konbini e convida-o para morarem juntos, pois assim as pessoas parariam de perguntar sobre o fato dela ser ainda solteira, ao menos morando com um homem ela teria uma preocupação a menos.

Keiko compreendia Shiraha, mesmo ele sendo insuportável, o fato dele não se encaixar na sociedade gerava nela uma espécie de identificação e por mais que seus diálogos fossem sempre ele sendo extremamente grosseiro, ela sempre rebatia com indiferença e tirava disso sempre grandes reflexões.

Ao ser obrigada a sair do seu trabalho temporário em busca de se encaixar na sociedade, a vida de Keiko parece perder todo o sentido e ela só consegue recuperar ao reencontrar a Voz da Konbini antes de ir para uma entrevista de emprego em um emprego “de verdade”, contrariando o seu roommate desagradável, ela abre mão de ser uma pessoa comum, aceita na sociedade, para voltar a ser uma Funcionária.

De maneira singela, Murata nos diz sobre o “mito da vocação” que muitas pessoas dizem não existir, já eu penso o contrário, vejo sob a minha própria experiência como professor: sempre me perguntam o porque de ser professor, se não penso em mudar de profissão por conta de todos os problemas que nós já sabemos, mas eu simplesmente não me vejo fazendo outra coisa senão isso (além de escrever, claro, mas eu ainda considero dois empregos complementares).

Querida Konbini foi uma das minhas leituras favoritas desse ano de 2021, para quem busca se iniciar nas leituras da literatura japonesa contemporânea talvez não tenha livro melhor para começar.

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Gabriel Yukio Goto

Asiático-brasileiro, libriano, escritor e poeta. Formado em Letras e com 2 livros publicados.